terça-feira, 12 de março de 2013

O Mito Cura - By Manuel Antônio de Castro


O MITO CURA: O APELO E ESCUTA DA PRO-CURA
             
Enquanto cura , Dasein [presença] é o “entre” nascimento e morte.
Heidegger. Ser e tempo.

            Muitas vezes ficamos perplexos diante do que nos acontece na vida. Tentamos encontros e só encontramos des-encontros. Tentamos sair de nós e nos pro-curamos nas coisas, nos objetos, nos produtos, no consumo, num envolvimento estético-consumista da vida. E acabamos por nos con-sumir no con-sumo. Pro-curamos sistemas filosóficos, explicações detalhadas e claras do social, do histórico, do destino, do que somos, do que é a vida, o amor, a felicidade, a morte, a dor. E não encontramos. Sempre há um resto, um “entre”, um aquém ou um além, um incontornável. Há sempre uma distância na maior proximidade, uma ansiedade indefinida e nunca satisfeita. E então buscamos uma religião como –ismo, na tentativa e esperança de encontrar a plena satisfação num além infinito, numa transcendência de plenitude, numa eternidade em que se resolve e completa toda transitoriedade, falta, finitude e limitação. Diante do inexplicável e do aguilhão da morte e da dor, da pura e total dissolução construímos uma vida paralela e sempre fora e além de nós. Mas a vida é uma só em tensão permanente com a morte, véu do nada, enigma que não se explica, só se experiencia.
            Qual espelho e corpo de ressonância empreendemos como linguagem a viagem em busca do que somos e pro-curamos no outro. A pro-cura se dá nos e como desvelos da cura / cuidado. A con-vivência nos torna solidários. Mais. Tecemos ideais, formulamos projetos, nos movemos num impulso de doação e carinho, e chamamos ao outro: meu amor, meu amigo, meu irmão. A rotina do cotidiano torna visível os limites, os defeitos, a diversidade, as diferenças, a não identidade pro-curada e sempre em vista. Aos encontros se sucedem os desencontros e a chama da pura doação se vai extinguindo na compreensão de que fazemos do apelo e fala um puro eco do que em nós não acontece: e colhemos a solidão. Solidários-solitários visualizamos, para além do outro e do que já somos, o que não somos e pro-curamos, como penhor de todos os nossos empenhos: ser, sempre em vias de acontecer.
            Até que cansados ou desiludidos nos entregamos ao mistério. É o advento do apelo como Escuta. Este nos cerca, nos invade, nos envolve porque tanto está fora como dentro de nós. É a plenitude possível. E então nos surpreendemos com o mistério que somos. Não somos o mistério, mas somos no e pelo mistério. E então a pro-cura volta mais plena, mais completa, total. É a Cura. Porque a sua amplitude vai para além e aquém do infinitamente pequeno e infinitamente grande. Tudo mistério. E então a pro-cura se transforma em apelo. Um apelo que não sabemos determinar nem definir: Cura. Um apelo que se faz tão presente que se transforma numa presença de proximidade: a presença presente se dá e manifesta no grande e pleno presente que é a presença. Pura graça e gratuidade. Amar.
            A pro-cura se transforma em Escuta, em Cura: o cuidado pelo que somos enquanto presente da presença. O apelo/escuta/cuidado/presença se transforma em fala. Uma fala diferente: calma, aconchegante, sem som. É a voz do silêncio: quando ser é estar sendo.
            A Cura de toda pro-cura aboliu as diferenças, as oposições, os passados e futuros, as ansiedades e decepções, e se torna travessia poética. Atentos à Cura de toda pro-cura, somos envolvidos pelo apelo que brota da mais profunda de nossa interioridade, onde subjetividade e objetividade, dentro e fora, proximidade e distância se dissolvem na integração e unidade da diversidade. Então apelo, fala, escuta e silêncio são um e o mesmo, porque somos sendo. Cura / Cuidado.
           
Cuidado se diz em latim "cura".Toda pro-CURA é uma manifestação da "cura", do Cuidado. Toda "cura" ou Cuidado diz, por isso mesmo, de uma ocupação e de uma pre-ocupação. Talvez com CURA (cuidado) se dê a CURA de muitas fobias, traumas e limites que temos, porque a cura de toda pro-cura nos põe frente a frente com o tu e com o que desde já sempre somos em vista de nos apropriarmos do que nos é próprio. Cura é apropriar-se do que é próprio.

O mito, que é a fala e a linguagem  dos deuses, do sagrado, também nos adveio como Cura. È o mito da Cura. Ele nos foi transmitido por Higino, escravo egípcio de César Augusto. Morreu no ano 10 de nossa era.
Diz o mito:
C U R A

"Certa vez, atravessando um rio, Cuidado viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe dar forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio Júpiter [Zeus]. Cuidado pediu-lhe que desse espírito à forma da argila, o que ele fez de bom grado. Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse dado o seu nome. Enquanto Cuidado e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a Terra, querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço de seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno [Cronos/Tempo] como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu eqüitativa: "Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito, e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, porém, foi Cuidado quem primeiro o formou, ficará sob seus cuidados enquanto ele viver. Como, no entanto, sobre o nome há disputa, ele deve se chamar Homem, pois foi feito de "humus" (terra fértil)."

            No mito CURA aparecem outros mitos: Júpiter / Zeus, Terra / Gaia, Saturno / Cronos. Para melhor apreender o lugar de cada um é necessário ler os mitos enquanto mitos e não cair em fáceis dicotomias nem em definições do mito através da filosofia, da teologia e da ciência. O mito não precisa dessas definições e conceituações. Ele tem vigor próprio. O mito deve ser interpretado a partir do próprio mito.

 Temos de ter cuidado em não fazer do mito uma simples dimensão do físico, do psicológico ou do religioso, mas, sim, lê-lo e apreendê-lo na sua dimensão mítica: o ontológico-poético, porque o mito não explica nada. Enuncia, manifesta o real na e pela linguagem (mito) em seu mistério (mutus). Eis o apelo do mito da CURA: a Escuta.


Ser como Cura.

O mito da Cura se manifesta no Cuidado em que nos lançamos em todas as nossas pro-curas. A pro-cura como o-cupar-se: O cuidado no mundo, em meio aos entes, às coisas, de onde surgem as relações e referências intramundanas. A pro-cura como pré-ocupar-se: O cuidado com os outros, com o que não somos, com as diferenças, com a diversidade, com a presença do outro como experienciação de com-paixão e fraternidade. A pro-cura com o que é próprio: O cuidado em meio ao que é impróprio do que nos é próprio, de realização de nossas possibilidades  como afirmação de nossa liberdade, a partir da escuta do apelo do que em toda pro-cura se mostra como sentido e verdade de todos os cuidados, a Cura.



Os quatro CUIDADOS .

            Somos todos e cada um de nós um ser em liminaridade e complexo, mas unos e harmônicos. Disso nos falam os quatro cuidados essenciais. Compreende-los é pôr-se em estado de pro-cura e Escuta.

1- O Cuidado profissional : em meio às coisas e outros entes do mundo e no mundo, em meio às relações intramundanas, temos que sobre-viver. Nisso e por isso se manifesta o nosso Cuidado profissional como pro-cura de e apelo de Cura. O profissional aparece assim como algo essencial, desde que realizado no horizonte da pro-cura da Cura, onde nada se torna formal, funcional ou mecânico, mas apenas e tão somente como uma faceta e possibilidade necessária de apropriar-se do que nos é próprio, sem cair no impróprio e no estranho. Ele se expressa como trabalho e co-laboração. No e pelo trabalho advém a linguagem. E somos como cuidado profissional no e pelo trabalho/linguagem.

2- O Cuidado afetivo: todo cuidado aponta para uma possibilidade, porque somos fundamental e essencialmente um diálogo, onde um eu e um tu fazem da con-vivência uma pro-cura afetiva e efetiva de realização com o outro/a como oferta e apelo da Cura. A convivência se inscreve no originário inaugural de Eros, no vigor do qual nos realizamos como compaixão, fraternidade e amor. O cuidado afetivo é o que nos afeta, concerne e inter-essa em todos os nossos empenhos e desempenhos de ser e não ser, dialogando. Ser afetivo é ser atraído pela Cura enquanto penhor de todo Cuidado de e na convivência e amor. No horizonte de todo afeto nos apropriarmos do que nos é próprio como medida e diálogo, a Cura, reunidos na e pela linguagem.

3- O Cuidado sagrado: o sagrado é o originário de todo mito, de toda poesia, de toda religião, dando-se e manifestando-se nos ritos, nos poemas, nas liturgias. O mítico e o poético como palavras manifestativas trazem já dentro de si o mistério, o que silencia como possibilidade de toda fala e escuta. A pro-cura do poético é o cuidado que nos projeta nos caminhos do mistério, atraídos pelo que ressoa e se faz presente em nós como voz da linguagem, que se retrai enquanto oferta de memória e tempo originários, a Cura. A Cura é o que se cala e fala em tudo que se diz e se quer dizer. O sagrado mítico-poético é a experienciação do mistério da voz do silêncio. Nela, o Cuidado do sagrado se dá como escuta da voz da linguagem.

4- O Cuidado do pensamento: pensamento é uma questão de experienciação na e de Cura. O cuidado do pensamento nos envia nas vias de ser, crer e conhecer, e espera pela Escuta do Silêncio, que é a linguagem para além do lógico e ilógico. O cuidado de pensamento é a obediência (ob-audire) à Cura, enquanto proximidade e vizinhança do Nada. Nele nos advém a alegria na dor, o amadurecer plenificador no sofrimento, eros e tanatos, a realidade nas peripécias da realização do pensamento. A Cura do pensamento é atração incessante do que se retrai como vigência do Não-ser em tudo que é. O cuidado do pensamento é a tarefa – pensum – que nos foi destinada enquanto ação integradora e apropriadora do que nos é próprio. Nele e por ele a Cura nos advém como linguagem do pensamento.


Cada cuidado pode realizar a CURA de alguma maneira, porque não somos um bolo dividido em quatro pedaços. E cada cuidado tem a sua doçura. O amor é a simplicidade dos quatro na qual cada um alegremente se dá e retrai de modo diferente. No e pelo amar se dá toda Cura. É o que nos diz toda experienciação de poíesis.
                          Para ser grande, sê inteiro: nada
        Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe      
              quanto és
        No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
        Brilha, porque alta vive.
                               
Fernando Pessoa.
 Heidegger e o mito da CURA.
 O pensador trata deste mito em Ser e tempo, no sexto capítulo. A CURA aparece como algo constitutivo do Ser do homem e não como algo puramente humano, a abertura constitutiva do Dasein/presença. Conforme podemos ver no mito, ser ser humano é ser CURA, no “entre” vida/morte.

A nossa tendência é ver no cuidado algo menor que diz respeito a quatro instâncias do homem:

O QUERER
“O poder-ser em função de que a pre-sença é possui em si mesmo o modo de ser-no-mundo. Nele reside, portanto, ontologicamente, a  remissão ao ente intramundano. A cura é sempre ocupação (Besorge) e preocupação (Fürsorge), mesmo que de modo privativo. No querer, só se apreende um ente já compreendido, isto é, um ente já projetado em suas possibilidades como ente a ser tratado na ocupação ou a ser cuidado em seu ser na preocupação. É por isso que ao querer sempre pertence algo que se quer, algo que já se determinou a partir daquilo em-função-de que se quer. Para a possibilidade ontológica do querer são constitutivos: a abertura prévia do em-função-de que (o preceder a si mesma), a abertura do que se pode ocupar (o mundo como algo em que já se é) e o projeto de compreensão da pre-sença num poder-ser para a possibilidade de um ente “que se quis”. No fenômeno do querer, transparece a totalidade subjacente da cura (Sorge).”

O DESEJAR
“O “querer” tranqüilo, que se acha sob a guia do impessoal, também não significa a extinção do ser no poder-ser, mas somente uma modificação. O ser para possibilidades mostra-se, pois, na maior parte das vezes, como simples desejar. No desejo, a pre-sença projeta o seu ser para possibilidades as quais não somente não são captadas na ocupação como não se pensa ou se espera, sequer uma vez, a sua realização. Ao contrário, a predominância do preceder a si mesma, no modo do simples desejar, comporta uma incompreensão das possibilidades fatuais. O ser-no-mundo, cujo mundo se projeta primariamente como mundo do desejo, perde-se, de modo insustentável, no que se acha disponível e isso de tal modo que o que está disponível como o único manual jamais é suficiente à luz do que se deseja. Desejar é uma modificação existencial do projetar-se da compreensão que, na de-cadência do estar-lançado, ainda adere pura e simplesmente às possibilidades. Essa adesão fecha as possibilidades; aquilo que está “presente” na adesão do desejo torna-se “mundo real”. Ontologicamente, desejar pressupõe a cura.”

A TENDÊNCIA
“A adesão de-cadente revela a tendência da pre-sença de se “deixar  viver” pelo mundo em que ela sempre está. A tendência mostra o caráter de estar fora, aspirando a ... O preceder a si mesmo perdeu-se num “já sempre apenas junto a”. A inclinação da tendência é deixar-se atrair por aquilo a que a tendência adere. Se a pre-sença também afunda numa tendência não é porque uma tendência já é simplesmente dada, mas porque a estrutura completa da cura se modificou. Cega, ela coloca todas as possibilidades a serviço da tendência.

A PROPENSÃO
“Em contrapartida, a propensão “para viver” é uma“ inclinação” (Hin-zu) que traz por si mesma o impulso. É uma “inclinação a qualquer preço”. A propensão tenta reprimir outras possibilidades. Aqui também o preceder a si mesmo é impróprio, embora o fato de se deixar atropelar pela propensão advenha daquilo mesmo a que é propenso. A propensão pode abalrroar a disposição e a compreensão. Mas, com isso, a pre-sença nunca é “mera propensão” à qual, por vezes, se venha acrescentar outras atitudes de dominação e condução. Enquanto modificação de todo ser-no-mundo, a pré-sença já sempre cura.

PROPENSÃO E TENDÊNCIA
“Embora na pura propensão a cura ainda não se tenha livrado, ela torna ontologicamente possível, a partir dela mesma, o ser propenso da pre-sença. Na tendência, porém, a cura está sempre comprometida. Tendência e propensão são possibilidades que possuem suas raízes no estar-lançado da pre-sença. Não se pode negar a propensão “para viver”, nem tampouco estirpar a tendência de se “deixar viver” pelo mundo. Ambas, porém, apenas se dão porque se fundam ontologicamente na cura e se modificam através dela como modo ôntico-existencário próprio.”

P. 259-261, Ser e tempo. 2.e. Vozes, 1988.

A CURA COMO QUESTÃO E PENHOR

“Como a palavra querer também as palavras questionar, questão e questionamento vêm do latim quaerere. Quaerere significa: empenhar-se na busca e pro-cura do que não se tem por já se ter e para se vir a ter. Não se trata de uma entre muitas outras questões. No empenho de viver, vive-se a primeira de todas as questões. Mas primeira não decerto no sentido cronológico. Para nós, filhos da razão e da consciência, o caminho mais longo e penoso é aquele que nos conduz para nós mesmos, para o que nos é mais próximo. Tão próximo que até o somos. É por isso que em nossa caminhada de existência queremos muita coisa, questionamos sempre, pro-curamos em tudo vestígio, sem no entanto nos depararmos como o penhor de nossos empenhos e desempenhos, antes de nos darmos conta da primeira de todas as questões. É que desde sempre já somos sua propriedade. Só de vez em quando lhe pressentimos a força misteriosa, sem sabermos ao certo o que nos acontece. Num grande desespero, quando todo peso parece desaparecer da vida e se obscurece qualquer sentido, aparece a questão. Talvez apenas insinuada numa vibração tênue que bruxuleia na confusão e de novo se esboroa. Numa grande esperança do coração, quando tudo se transfigura e nos parece rodear pela primeira vez, como se fosse mais fácil perceber-lhe a ausência do que a presença. Numa fossa da vida, quando distamos igualmente da esperança e do desespero e a banalidade de todo dia estende um vazio onde se nos afigura indiferente se há ou não empenho. Ressoa novamente a questão: a existência se dá sempre como o penhor de todo empenho e desempenho.”

Emmanuel Carneiro Leão. Aprendendo a pensar  I. Petrópolis, Vozes, 1976, p. 44.

TRAVESSIA POÉTICA: A CURA COMO QUESTÃO

No empenho e desempenho de todos os nossos empenhos em vista do penhor consiste a paidéia poética. O POÉTICO É A QUESTÃO COMO CURA. Questão não é uma questão de simples querer ou desejar. Somos e nos movemos nas questões. A Cura é a questão das questões.

Um outro autor conhecido trata do Mito CURA / cuidado.
É Leonardo Boff no livro: Saber cuidarética do humano – compaixão pela terra. 8.e. Petrópolis, Vozes, 2002.

A leitura do livro é muito interessante e proveitosa, mas o autor não radicaliza a questão da CURA no mito. O seu entendimento de mito é cheio de preconceitos inaceitáveis. É um livro redigido numa linguagem simples, direta e de grande atualidade, mas não toma as questões pela raiz e aí perde densidade em vista da comunicação. Uma pena. Ele cita a interpretação de Martin Heidegger em Ser e tempo, chamando-o o filósofo do cuidado. No entanto, a questão para Boff fica ainda no plano e no horizonte do humano, não se abrindo para a questão do cuidado, sentido e verdade do Ser. A falsa oposição Céu / Terra facilita a fácil solução de um “mundo espiritual” por oposição ao terreno. Com isso deixa de radicalizar em termos éticos, porque faz do humano o fundamento do ético. Em nenhum momento se coloca a questão da linguagem pela qual o homem é e, sendo, é ético. O ético é o homem se dimensionando pela linguagem enquanto é sentido e é verdade. O ser implica o sentido do agir e do poético. O poético é a CURA enquanto ético. Mas o ético só é ético enquanto CURA poética.


2004 © by manuel antônio de castro
http://acd.ufrj.br/~travessiapoetic/filosoficos/omitocura.htm 18.05.2011

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Psicologia nas Relações Interpessoais

Psicologia nas Relações Interpessoais by Le Barros

O DIFÍCIL FACILITÁRIO DO VERBO OUVIR 
 Artur da Távola 

Um dos maiores problemas de comunicação, tanto a de massas como a interpessoal, é o de como o receptor, ou seja, o outro, ouve o que o emissor, ou seja, a pessoa, falou. Numa mesma cena de telenovela, notícia de telejornal ou num simples papo ou discussão, observo que a mesma frase permite diferentes níveis de entendimento. Na conversação dá-se o mesmo. Raras, raríssimas, são as pessoas que procuram ouvir exatamente o que a outra está dizendo. Diante desse quadro venho desenvolvendo uma série de observações e, como ando bastante entusiasmado com a formulação delas, divido-as com o competente eleitorado que, por certo, me ajudará, passando-me as pesquisas que tenha a respeito. Observe que:
1. Em geral o receptor não ouve o que o outro fala: ele ouve o que o outro não está dizendo.
2. O receptor não ouve o que o outro fala: ele ouve o que quer ouvir.
3. O receptor não ouve o que o outro fala: ele ouve o que já escutara antes e coloca o que o outro está falando naquilo que se acostumou a ouvir.
4. O receptor não ouve o que o outro fala: ele ouve o que imagina que o outro ia falar.
5. Numa discussão, em geral, os discutidores não ouvem o que o outro está falando: eles ouvem quase que só o que estão pensando para dizer em seguida.
6. O receptor não ouve o que o outro fala: ouve o que gostaria ou de ouvir ou que o outro dissesse.
 7. A pessoa não ouve o que a outra fala: ela apenas ouve o que está sentindo.
8. A pessoa não ouve o que a outra fala: ela ouve o que já pensava a respeito daquilo que a outra está falando.
9. A pessoa não ouve o que a outra está falando: ela retira da fala da outra apenas as partes que tenham a ver com ela e a emocionem, agradem ou molestem.
10. A pessoa não ouve o que a outra está falando: ouve o que confirme ou rejeite o seu próprio pensamento. Vale dizer, ela transforma o que a outra está falando em objeto de concordância ou discordância.
11. A pessoa não ouve o que a outra está falando: ouve o que possa se adaptar ao impulso do amor, raiva ou ódio que já sentia pela outra.
12. A pessoa não ouve o que a outra fala: ouve da fala dela apenas aqueles pontos que possam fazer sentido para as idéias e pontos de vista que, no momento, a estejam influenciando ou tocando mais diretamente. Esses doze pontos mostram como é raro e difícil conversar. Como é raro e difícil se comunicar! O que há, em geral, ou são monólogos simultâneos trocados à guisa de conversa, ou são monólogos paralelos, à guisa de diálogo. O próprio diálogo pode haver sem que necessariamente haja comunicação. Pode até haver um conhecimento a dois, sem que, necessariamente, haja comunicação. Esta só se dá quando ambos os polos ouvem-se, não, é claro, no sentido material de”escutar”, mas no sentido de procurar compreender, em sua extensão e profundidade, o que o outro está dizendo. Ouvir, portanto, é muito raro. É necessário limpar a mente de todos os ruídos e interferências do próprio pensamento durante a fala alheia. Ouvir implica numa entrega ao outro, numa diluição nele. Daí a dificuldade de as pessoas inteligentes efetivamente ouvirem. A sua inteligência em funcionamento permanente, o seu hábito de pensar, avaliar, julgar e analisar tudo interfere como um ruído na plena recepção daquilo que o outro está falando. Não é só a inteligência a atrapalhar a plena audiência.Outros elementos perturbam o ato de ouvir. Um deles é o mecanismo de defesa. Há pessoas que se defendem de ouvir o que as outras estão dizendo, por verdadeiro pavor inconsciente de se perderem de si mesmas. Elas precisam “não ouvir” porque “não ouvindo” livram-se da retificação dos próprios pontos de vista, da aceitação de realidades diferentes das próprias, de verdades idem e assim por diante. Livram-se do novo, que é saúde, mas as apavora. Não ouvir é, pois, um sólido mecanismo de defesa. Ouvir é um grande desafio. Desafio de abertura interior; de impulso na direção do próximo, de comunhão com ele, de aceitação dele como é e como pensa. Ouvir é proeza. Ouvir é raridade. Ouvir é ato de sabedoria. Depois que a pessoa aprende a ouvir, ela passa a fazer descobertas incríveis escondidas ou patentes em tudo aquilo que os outros estão dizendo a propósito de falar.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO DOS PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM


BIBLIOGRAFIA
PAIN, Sara. Diagnóstico e tratamento
dos problemas de aprendizagem. Trad. De Ana Maria
Netto Machado. Porto Alegre, Artes Médicas, 1985.

DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO DOS PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM

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OLIGOFRENIA –
- déficit cognitivo com compromisso orgânico secundário ou genético;
- aparece com um rendimento menos disperso, com um esforço acentuado de acomodação e melhor familiarização;
- modalidades do pensamento oligofrênico: estereotipia, viscosidade, rigidez;
- dependendo do tratamento dado pelos pais, o oligofrênico pode apresentar carência, características psicóticas e de transtornos adicionais na aprendizagem;

OLIGOTIMIA –
- embora apresente eventualmente compromisso neurológico ou metabólico, justifica-se mais por uma disfunção egóica;
- se apresenta com uma tendência marcadamente egocêntrica, com predominância da assimilação, em função do que o vocabulário pode ser muito mais rico e muito mais confuso do que no oligofrênico do mesmo nível;
- apresenta maiores recursos, mas os instrumenta menos ou de maneira pior do que o oligofrênico.

Nem todo déficit da inteligência acarreta um problema de aprendizagem;

Há casos bem compensados nos quais a criança aproveita todas as possibilidades viáveis para ela de acordo com seu QI;

Quando o déficit da inteligência não limita a aprendizagem aparece um rendimento melhor nas provas verbais de acumulação sem organização, sempre dentro dos limites que o QI do sujeito determina;

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CATEGORIAS DOS PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM

Debilidade Mental –
- geralmente, QI 75, especialmente as de treinamento;
- frequentemente, de origem genética e, eventualmente, de origem orgânica secundária (seqüelas pós-encefalites, meningo-encefalites, etc.), QI 50;
- essas crianças recorrem sempre aos índices perceptivos;
- nestes casos indica-se um tratamento psicopedagógico clínico cooperativo e centrado no estímulo;

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Rendimento Limítrofe –
- caracterizado por uma considerável dispersão nos resultados;
- QI 80 ou até o percentil 15;
- estruturas cognitivas instáveis e submetidas a regressões bruscas;
- quadro neurológico concomitantes de ansiedade e hipercinesia;

Normal Baixo –
- podem obter um QI igual ao limítrofe (85), mas observa-se uma maior homogeneidade na aplicação das estruturas construídas, que costumam ser sólidas;
- justifica-se por hipo-estimulação ou de personalidade, especialmente no que tange ao vínculo do sujeito com a realidade;
- trata-se de um quadro muito sensível ao tratamento psicopedagógico e de bom prognóstico.

Normal –
- é o que obtém um QI entre 90 e 110;
- um sujeito normal oscila dentro de uma margem de maturidade, mas de acordo com cada oportunidade particular;

Normal Superior –
- é o inteligente. Não há precocidade na aquisição das estruturas;
- o problema de aprendizagem destas crianças surge de uma má inserção escolar e de um predomínio na assimilação;
- geralmente acusam um rendimento verbal inusual, que costuma elevar indevidamente o QI.

Superdotados –
- QI superior a 130;
- quando apresentam problemas de aprendizagem mostram grande precocidade na aquisição de estruturas;
- apresentam carência na necessária acumulação da experiência no estágio anterior;
- há déficit lúdico, ou seja, dificuldade na organização da soma de dados;
- contam com muitas possibilidades, mas com poucos recursos.

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Índices da disposição do sujeito nas relações humanas:

  • Disposto, distraído, atento, interessado, indiferente, apático, etc;
  • Ritmo e gestos que imprime à sua atividade.

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Ações esteriotipadas que podem ocorrer:

*      Rigidez ou flexibilidade do pensamento, isto é, a sua possibilidade de mudar de direção e a disponibilidade de conhecimentos adquiridos;
*      Estereotipia, como tendência a buscar indícios perceptivos desde o exterior a fim de operar, onde a criança se defende da confusão;
*      A viscosidade refere-se a um tipo de pensamento recorrente que por temor a desorganizar-se aferra-se à redundância que o reassegura;
*      A labilidade se apresenta como uma perda de energia ou de vigor que desvitaliza a experiência;

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Psicodiagnóstico:
Primeiro, determinar o estágio em que a criança opera, as estruturas já elaboradas e as que se encontram num período de transição. Depois, analisar a relação entre os instrumentos de que a criança dispõe para interpretar a realidade e as exigências que o ensino lhe impõe, com o objetivo de decidir se suas dificuldades na aprendizagem podem ser justificadas ou não pela disponibilidade inteligente do sujeito. É necessário considerar as compensações e descompensações que aparecem no rendimento em relação com as diferentes modalidades que podem dar-se segundo o conteúdo material e as instruções de cada prova. Como:
Ø  Adequação perceptivo-motriz;
Ø  Têmporo-espacial;
Ø  Causal, por compreensão a partir de estímulos gráficos e verbais;
Ø  Informação;
Ø  Quantificação e automatismo do cálculo;

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TESTES USADOS PARA:
o   Analisar o nível de adequação perceptivo-motriz: Bender, as figuras complexas de Rey, os itens de cópia do círculo-quadrado Losango, a memória de desenhos de Terman, o complemento de desenhos de Thurstone, etc.
o   Têmporo-espacial: no Terman, por exemplo, a do tabuleiro escavado, identificação de formas, repetição de dígitos, dobragem de papel, esquema corporal; no Wechsler, cubos e quebra-cabeças; no Thurstone a prova que mede o fator espacial, etc.; provas de ritmo através das séries de batidas com diferentes intervalos.
o   Causal: é a passagem do estágio egocêntrico para a socialização; compreensão de uma situação dada na realidade ou capacidade de organização na leitura da experiência: nos absurdos gráficos de Terman, aptidão verbal de Thurstone e frases incompletas de Terman.
o   Informação: trata-se do conhecimento ou reserva de experiências sociais: prova de informação de Wechsler, a prova de materiais de Terman e o questionário de Kent, entre outros.
o   Quantificação e automatismo do cálculo: na resolução de problemas do Thurstone e Wechsler, e no Terman em níveis pré-operatórios de recontagem.

As provas psicométricas permitirão elucidar até que ponto a disponibilidade dos processos cognitivos justificam as dificuldades do sujeito na aquisição através da aprendizagem. Servem para a análise dos seguintes protocolos:
- idade mental, quociente intelectual, percentil e escore segundo o baremo aplicado;
- determinação do estádio de estruturação alcançado segundo a teoria genética;
- análise da dispersão: aptidões, áreas compensadas, descompensadas, ou deterioradas;
- modalidades da atividade cognitiva.

O PROBLEMA DA APRENDIZAGEM PODE SURGIR POR:

v  Fatores orgânicos:
- hipoacúsia (não querer ouvir) e a miopia (não querer ver);
- perda sensorial;
- investigação neurológica, pois quando há lesões ou desordens corticais (primárias, genéticas, neonatais ou pós-encefalíticas, traumáticas, etc.) encontramos uma conduta rígida, estereotipada, confusa, viscosa, patente na educação perceptivo-motora (hipercinesias, espasticidade, sincinesias, etc.), ou na compreensão (apraxias, afasias, certas dislexias);
- deficiências glandulares podem causar estados de hipomnésia, falta de concentração, sonolência e “lacunas”. Algumas auto-intoxicações por mau funcionamento renal ou hepático apresentam conseqüências parecidas;
- déficit alimentar;
- condições de abrigo e conforto para o sono.
      
v  Fatores específicos:
- transtorno na área da adequação perceptivo-motora
- aparecem na aprendizagem da linguagem, sua articulação e sua lecto-escrita, alteração da seqüência percebida, impossibilidade de construir imagens claras de fonemas, sílabas e palavras, inaptidão gráfica, etc.
- indeterminação da lateralidade do sujeito;
- dislexia: dificuldade para aprender a ler e/ou escrever; dificuldade na acomodação que determina uma insuficiência para a construção de imagens.

v  Fatores psicógenos:
- inibição e defesa;
- neurose (reação neurótica à interdição da satisfação);
- fobias;
- angústia;
- negação;
- compulsividade na repetição do erro.

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DISORTOGRAFIA – é uma coordenação fonomotriz, isto é, esforço de acomodação capaz de internalizar como imagem, os gestos que compõem a grafia de cada palavra.

v  FATORES AMBIENTAIS:

- esta variável pesa sobre a possibilidade do sujeito compensar ou descompensar o quadro;
- refere-se ao meio ambiente material do sujeito, às possibilidades reais que o meio lhe fornece, à quantidade, à qualidade, freqüência e abundância dos estímulos que constituem seu campo de aprendizagem habitual;

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DIAGNÓSTICO DO PROBLEMA DE APRENDIZAGEM:

1        - Motivo da consulta:
? Significação do sintoma na família ou, com maior precisão, articulação funcional do problema de aprendizagem;
? Significação do sintoma para a família, isto é, as reações comportamentais de seus membros ao assumir a presença do problema;
? Fantasias de enfermidade e cura e expectativas acerca de sua intervenção no processo diagnóstico e de tratamento;
? Modalidades de comunicação do casal e função do terceiro.

2        – História Vital:
? Antecedentes natais:
- pré-natais
- perinatais
- neonatais
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? Doenças:
- doenças e traumatismos ligados diretamente à atividade nervosa superior. Estados que denotam perda de consciência, sonambulismo, espasmos ou convulsões, terrores noturnos, distrações descritas como “lacunas”;
- destacar, quando houve a doenças, o tempo de reclusão a que a criança foi obrigada, ou quão doloroso foi o processo;
- processos psicossomáticos como eczemas, bronquite asmática, vômitos, diarréias e cefaléias;
- verificar a disponibilidade física como destreza, habilidade manual, disposição para o esporte, o peso e a estatura em relação com a idade, a fatigabilidade e todas as possibilidades e limitações relacionadas com o corporal, especialmente as associadas aos órgãos dos sentidos.

? Desenvolvimento:
- motor
- da linguagem
- de hábitos

? Aprendizagem:
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A)  modalidade do processo assimilativo-acomodativo:
¨      Hipoassimiliação – os esquemas de objeto permanecem empobrecidos, bem como a capacidade de coordená-los. Isto resulta num déficit lúdico, e na disfunção do papel antecipatório da imaginação criadora;
¨      Hiperassimilação – pode dar-se uma internalização prematura dos esquemas com um predomínio lúdico, que ao invés de permitir a antecipação de transformações possíveis, desrealiza negativamente o pensamento da criança;
¨      Hipoacomodação – aparece quando o ritmo da criança não foi respeitado, nem sua necessidade de repetição, isto atrasa a internalização de imagens. Assim, podem aparecer problemas na aquisição da linguagem, quando os estímulos são confusos e fugazes;
¨      Hiperacomodação – acontece quando houve superestimulação da imitação. A criança pode cumprir as instruções atuais mas não dispõe de suas expectativas nem de sua experiência prévia com facilidade.

B) Situações dolorosas:
            - mudanças de casa ou de escola;
            - verificar sentimentos de perda.

C) Informação:
             - assuntos que são falados com a criança;
            - recepção que a cç encontra para o seu discurso.

D) Escolaridade:
            - histórico escolar comportamental.

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3        – Hora do jogo: quatro aspectos fundamentais da aprendizagem:
- distância de objeto, capacidade de inventário;
- função simbiótica, adequação significante-significado;
- organização, construção da seqüência;
- integração, esquema de assimilação.

4        – Provas psicométricas
5        – Provas Projetivas
- desenho da figura humana
- relatos
- desiderativo (solicita-se ao sujeito que escolha e rejeite em três níveis da realidade, imaginar-se transformando num elemento que ele escolhe – elementos vegetais, animais e objetos).pág. 63
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            Interessam os seguintes aspectos derivados das provas projetivas:
- recursos simbólicos para a representação;
- modalidade do inventário, organização e integração na fantasia;
- perturbações da identidade e a negação.

6        – Provas específicas
§      De lateralidade
§      De lecto-escrita: determinar que tipo de dificuldade é a que predomina no fracasso da criança na aquisição da escrita e da leitura.

7        – Análise do ambiente:
ª  Condições sócio-econômicas;
ª  Aproveitamento de recursos;
ª  Ideologia.

DIAGNÓSTICO E ORIENTAÇÃO TERAPÊUTICA       pág.69

*      Hipótese diagnóstica;
*      Devolução diagnóstica;
*      Tratamento e contrato

O tratamento psicopedagógico adquire sentido na ação institucional. Isto permite uma rápida orientação destinada aos pais, seja para seu ingresso num grupo, seja para uma terapia familiar ou de casal; garante um bom controle do aspecto orgânico e neurológico; oferece a possibilidade de diálogo quando o paciente recebe mais de uma atenção e assegura a complementação integrada de outras técnicas pedagógicas, sejam elas expressivas, ocupacionais, etc. permite especialmente consolidar uma boa equipe de trabalho onde se verifica a teoria e as técnicas sobre a base de um intercâmbio de experiências, onde possa haver especializações quanto à programação e informação, onde possa confeccionar-se material comum de estimulação e por fim onde possam aprender a adquirir prática novos profissionais. Pág.75